Nós tínhamos acabado de entrar no aeroporto, Marina e eu.
Era sexta, Carlos ia chegar e lá fomos nós, mãos dadas, passos largos, num clima de reencontro e quase correndo para desviar daquela multidão que se atropelava para não perder a hora ou, talvez, para abraçar mais rápido quem fosse chegar.
E, nesta de circular espaços ... desviar daqui e dali ..., num de repente, levei o maior susto! Eu vi uma pessoa que me chamou muito a atenção, uma imagem que conseguiu, em segundos, parar meu corpo e levar meu pensamento, completamente, para longe de mim. Mas eu não conseguia acertar, de jeito nenhum, com a memória.
Fiquei me perguntando, de onde conheço? Será dos tempos de infância? Impossível! Já faz décadas que deixei o Rio Branco, a minha terra natal.
Do Sacré-Coeur, colégio onde estudei por muitos anos?? Não, não era.
Vizinha dos velhos tempos? Colega da Aliança Francesa ou da Cultura?? Também não.
Estava toda de branco, carregava uma criança no colo e fui seguindo-a na tentativa de, pelo menos, conseguir cruzar olhares para ver se me reconhecia, se ia exclamar por me reencontrar, trocar sorrisos que fossem ainda de dúvidas, demonstrar alegrias ou trazer notícias de amigos.
Era o que eu mais queria!
Olhei, mas nada... Parei e fiquei alí, espreitando assunto que facilitasse uma conversa entre nós.
E assim, nesta procura dentro do meu passado, eu, sem querer, sem qualquer planejamento ou despedidas, sem avisar sequer a mim mesma, comecei a viajar em lembranças e acabei me vendo em Rio Branco, aos 7 anos de idade.
Nós morávamos na Mello Barreto, bem atrás da cadeia.
Do lado direito, tinha a pensão da Dona Rosinha do Seu Totônho, pais do Celinho.
Na frente, passada a linha do trem, a oficina do Sr. Wilson onde eu adorava ver as máquinas trabalhando e soltando trancinhas de aço moído como se fossem verdadeiras serpentinas de ferro enroladinho.
As filhas, Bárbara e Sandra, eram minhas amigas. E como me lembro da comida da casa delas, preparada pela Tia Chafia!! Pareço sentir, agora, o perfume da hortelã fresquinha bem espremida entre seus dedos, e vê-la, sentada na porta da cozinha, bacia no colo, amassando a carne moída para os quibes. Eram deliciosos!!
Na esquina, antes da ponte, havia, de um lado, o Posto de Gasolina do seu Antônio, casado com Da. Glorinha, a primeira professora que jamais esqueci. No Posto, havia duas coisas que me fascinavam: uma placa enorme com um pneu desenhado que me fez passar anos soletrando e tentando entender, em bom português de criança recém alfabetizada, o que era " F I R E S T O N E ". Puro mistério!!! Outra, era uma vendinha simples do Posto, com uma porta só, onde mamãe comprava aqueles chicletes Adams, da caixinha amarelinha. Numa das astes da caixinha tinha um número, minúsculo por sinal, que uma amiguinha me disse, e eu acreditei na hora, lógico, que se eu juntasse uma sequência X de números ganharia uma caixa grande cheia de chicletes. Passei a infância juntando e neca de conseguir ...
Do outro lado, no começo do famoso Caminho da Vovó, ficava o Conservatório. Batista era o maestro. Eu gostava de ir para as aulas mas talento? Nunca, jamais tive.
Seguindo ... as casas da Enedina, filha do Peixoto; da Isis e Isa, da família do Sr. Joubert; dos Passos e da Dinalva, prima querida que veio morar perto de nós quando já preparávamos a mudança para Brasília. Uma pena ...
No fundo do nosso terreno, divisando com o quintal, tinha a Cooperativa e o velho campinho de futebol onde empinar pipas era tudo de bom! Mas, mamãe sempre dizia que era brincadeira só de menino e, quando muito, eu podia ficar ali um pouquinho, desde que fosse naquela de espiar pela cerca sem poder atravessar os limites.
O Xopotó, rio da minha terra, serpenteava nossa chácara de norte a sul. Para nós, verdadeiro mar doce. Nas suas margens, Eurico, Elvira e eu montávamos arquibancada para ver o vai e vem dos caminhões da Usina, no auge da safra, chegarem carregadinhos de cana para a moagem.
Lembro que de tarde, bem no final do dia, gostávamos de ficar caladinhos para tentarmos escutar a matinêe, apenas escutar, dos filmes que passavam no Cine Maracanã: Tarzan; Ben Hur; O Vento Levou e Marcelino Pão e Vinho foram filmes que ficaram marcados nas nossas lembranças.
Assim nosso tempo de criança de interior corria alegre neste pequeno espaço de geometria mineira e eu só parava quando mamãe me chamava para colocar o uniforme do Grupo Escolar Padre Antônio Corrêa.
Eu não esqueço a sensação gostosa das suas mãos, dos seus gestos macios de mãe ajeitando suavemente cada detalhe do uniforme. Que saudades!
Do laço de cetim branco que durava, quando muito, meio minuto apenas amarrado aos meus cabelos lisos; da meia de algodão que ia brigando com as Alpargatas Roda por todo o caminho até terminar completamente embolada no meio do meu pé, e eu detestava; da puxadinha final que mamãe dava na minha saia plissada, azul marinho, para que ficasse mais justa ao meu corpo miúdo e prendesse melhor a blusa de tricoline branca, até à lancheira de couro recheada de pão com goiabada e café com leite na garrafa.
Tudo era bem vistoriado!
Para nada ficar esquecido, ela ainda me levava até o portão e se despedia de mim, sempre com um discreto afago no meu queixo lembrando juízo e transmitindo, pelos seus olhares maternais, toda a proteção que seu coração pedia.
Desta forma, abraçada a seus eternos carinhos e levada pelo vento eu corria sem medo, completamente protegida para chegar cedinho à escola; escolher um bom lugar e escutar as estórias encantadoras da Dona Zizinha Ubaldo.
Como era bom!
A fila no Grupo era sempre por ordem de tamanho. Os braços tinham que ser esticados o máximo, para frente e para a lateral, até limitar com precisão a distância entre cada colega. Só depois de perceber silêncio e elegância de todos é que Dona Yolanda, a coordenadora, começava o Hino Nacional.
Do meu lado, todos os dias, eu reservava espaço para uma menina bem clara, uma colega quietinha, com algumas sardinhas no rosto e que agora, incrível, aqui nesse aeroporto de Brasília, quem diria? ... revirando a infância em pensamentos, eu a reencontro. Sem dúvidas, é ela!!
Curiosa como estava, não resisti. Pedi desculpas e fui logo perguntando: você não é de Rio Branco?!..., não teria estudado comigo?!... sou Elza Maria, filha da Dona Eponina e nós brincávamos muito de pique no Grupo. Lembra??!! Lembra de mim?
Completamente assustada, reticente de quem tenta ajustar as lembranças, me respondeu:"- Ah, sim, sou Selma Silva Araújo mas eu fiz apenas meu primeiro ano primário lá no Grupo Padre Corrêa. Depois, eu me mudei para a Escola Normal".
Inacreditável!!
Mas foi assim, graças às marcantes memórias da infância, que vão ficando cada vez mais claras por conta da necessidade que sentimos de resgatá-las, que eu reconheci uma colega de turma passados 40 anos!!!
Esta bela coincidência nos reuniu de novo.
Agora é conversando com a Selma que eu consigo, morando em Brasília, ter o Rio Branco mais pertinho de mim. De conversa em conversa, que normalmente duram horas no telefone, eu visito com ela o meu passado sempre que me dá vontade e ainda consigo ter notícias de todos que fizeram parte da minha infância querida “que os anos não trazem mais”.
Publicado no jornal ''A nova Imprensa" de Visconde do Rio Branco/Minas Gerais-MG, Edição n. 132. 7.1.2022.







