28 de agosto de 2010

40 anos depois


Nós tínhamos acabado de entrar no aeroporto, Marina e eu.

Era sexta, Carlos ia chegar e lá fomos nós, mãos dadas, passos largos, num clima de reencontro e quase correndo para desviar daquela multidão que se atropelava para não perder a hora ou, talvez, para abraçar mais rápido quem fosse chegar.

E, nesta de circular espaços ... desviar daqui e dali ..., num de repente, levei o maior susto! Eu vi uma pessoa que me chamou muito a atenção, uma imagem que conseguiu, em segundos, parar meu corpo e levar meu pensamento, completamente, para longe de mim. Mas eu não conseguia acertar, de jeito nenhum, com a memória. 

Fiquei me perguntando, de onde conheço? Será dos tempos de infância? Impossível! Já faz décadas que deixei o Rio Branco, a minha terra natal. 
Do Sacré-Coeur, colégio onde estudei por muitos anos?? Não, não era. 

Vizinha dos velhos tempos? Colega da Aliança Francesa ou da Cultura?? Também não. 

Estava toda de branco, carregava uma criança no colo e fui seguindo-a na tentativa de, pelo menos, conseguir cruzar olhares para ver se me reconhecia, se ia exclamar por me reencontrar, trocar sorrisos que fossem ainda de dúvidas, demonstrar alegrias ou trazer notícias de amigos. 

Era o que eu mais queria! 

Olhei, mas nada... Parei e fiquei alí, espreitando assunto que facilitasse uma conversa entre nós. 

E assim, nesta procura dentro do meu passado, eu, sem querer, sem qualquer planejamento ou despedidas, sem avisar sequer a mim mesma, comecei a viajar em lembranças e acabei me vendo em Rio Branco, aos 7 anos de idade. 

Nós morávamos na Mello Barreto, bem atrás da cadeia. 

Do lado direito, tinha a pensão da Dona Rosinha do Seu Totônho, pais do Celinho. 

Na frente, passada a linha do trem, a oficina do Sr. Wilson onde eu adorava ver as máquinas trabalhando e soltando trancinhas de aço moído como se fossem verdadeiras serpentinas de ferro enroladinho.
As filhas, Bárbara e Sandra, eram minhas amigas. E como me lembro da comida da casa delas, preparada pela Tia Chafia!! Pareço sentir, agora, o perfume da hortelã fresquinha bem espremida entre seus dedos, e vê-la, sentada na porta da cozinha, bacia no colo, amassando a carne moída para os quibes. Eram deliciosos!! 

Na esquina, antes da ponte, havia, de um lado, o Posto de Gasolina do seu Antônio, casado com Da. Glorinha, a primeira professora que jamais esqueci. No Posto, havia duas coisas que me fascinavam: uma placa enorme com um pneu desenhado que me fez passar anos soletrando e tentando entender, em bom português de criança recém alfabetizada, o que era " F I R E S T O N E ". Puro mistério!!! Outra, era uma vendinha simples do Posto, com uma porta só, onde mamãe comprava aqueles chicletes Adams, da caixinha amarelinha. Numa das astes da caixinha tinha um número, minúsculo por sinal, que uma amiguinha me disse, e eu acreditei na hora, lógico, que se eu juntasse uma sequência X de números ganharia uma caixa grande cheia de chicletes. Passei a infância juntando e neca de conseguir ... 

Do outro lado, no começo do famoso Caminho da Vovó, ficava o Conservatório. Batista era o maestro. Eu gostava de ir para as aulas mas talento? Nunca, jamais tive. 

Seguindo ... as casas da Enedina, filha do Peixoto; da Isis e Isa, da família do Sr. Joubert; dos Passos e da Dinalva, prima querida que veio morar perto de nós quando já preparávamos a mudança para Brasília. Uma pena ... 

No fundo do nosso terreno, divisando com o quintal, tinha a Cooperativa e o velho campinho de futebol onde empinar pipas era tudo de bom! Mas, mamãe sempre dizia que era brincadeira só de menino e, quando muito, eu podia ficar ali um pouquinho, desde que fosse naquela de espiar pela cerca sem poder atravessar os limites. 

O Xopotó, rio da minha terra, serpenteava nossa chácara de norte a sul. Para nós, verdadeiro mar doce. Nas suas margens, Eurico, Elvira e eu montávamos arquibancada para ver o vai e vem dos caminhões da Usina, no auge da safra, chegarem carregadinhos de cana para a moagem. 

Lembro que de tarde, bem no final do dia, gostávamos de ficar caladinhos para tentarmos escutar a matinêe, apenas escutar, dos filmes que passavam no Cine Maracanã: Tarzan; Ben Hur; O Vento Levou e Marcelino Pão e Vinho foram filmes que ficaram marcados nas nossas lembranças. 

Assim nosso tempo de criança de interior corria alegre neste pequeno espaço de geometria mineira e eu só parava quando mamãe me chamava para colocar o uniforme do Grupo Escolar Padre Antônio Corrêa. 

Eu não esqueço a sensação gostosa das suas mãos, dos seus gestos macios de mãe ajeitando suavemente cada detalhe do uniforme. Que saudades! 

Do laço de cetim branco que durava, quando muito, meio minuto apenas amarrado aos meus cabelos lisos; da meia de algodão que ia brigando com as Alpargatas Roda por todo o caminho até terminar completamente embolada no meio do meu pé, e eu detestava; da puxadinha final que mamãe dava na minha saia plissada, azul marinho, para que ficasse mais justa ao meu corpo miúdo e prendesse melhor a blusa de tricoline branca, até à lancheira de couro recheada de pão com goiabada e café com leite na garrafa. 

Tudo era bem vistoriado! 

Para nada ficar esquecido, ela ainda me levava até o portão e se despedia de mim, sempre com um discreto afago no meu queixo lembrando juízo e transmitindo, pelos seus olhares maternais, toda a proteção que seu coração pedia. 

Desta forma, abraçada a seus eternos carinhos e levada pelo vento eu corria sem medo, completamente protegida para chegar cedinho à escola; escolher um bom lugar e escutar as estórias encantadoras da Dona Zizinha Ubaldo. 

Como era bom! 

A fila no Grupo era sempre por ordem de tamanho. Os braços tinham que ser esticados o máximo, para frente e para a lateral, até limitar com precisão a distância entre cada colega. Só depois de perceber silêncio e elegância de todos é que Dona Yolanda, a coordenadora, começava o Hino Nacional. 

Do meu lado, todos os dias, eu reservava espaço para uma menina bem clara, uma colega quietinha, com algumas sardinhas no rosto e que agora, incrível, aqui nesse aeroporto de Brasília, quem diria? ... revirando a infância em pensamentos, eu a reencontro.  Sem dúvidas, é ela!! 

Curiosa como estava, não resisti. Pedi desculpas e fui logo perguntando: você não é de Rio Branco?!..., não teria estudado comigo?!... sou Elza Maria, filha da Dona Eponina e nós brincávamos muito de pique no Grupo. Lembra??!! Lembra de mim? 

Completamente assustada, reticente de quem tenta ajustar as lembranças, me respondeu:"- Ah, sim, sou Selma Silva Araújo mas eu fiz apenas meu primeiro ano primário lá no Grupo Padre Corrêa. Depois, eu me mudei para a Escola Normal". 

Inacreditável!! 

Mas foi assim, graças às marcantes memórias da infância, que vão ficando cada vez mais claras por conta da necessidade que sentimos de resgatá-las, que eu reconheci uma colega de turma passados 40 anos!!! 

Esta bela coincidência nos reuniu de novo. 

Agora é conversando com a Selma que eu consigo, morando em Brasília, ter o Rio Branco mais pertinho de mim. De conversa em conversa, que normalmente duram horas no telefone, eu visito com ela o meu passado sempre que me dá vontade e ainda consigo ter notícias de todos que fizeram parte da minha infância querida “que os anos não trazem mais”.

Publicado no jornal ''A nova Imprensa" de Visconde do Rio Branco/Minas Gerais-MG, Edição n. 132. 7.1.2022.

1 de agosto de 2010

Que saudades de você


Eurico,

Que saudades de você!!

Que vontade imensa que hoje fosse Natal e que eu pudesse lhe telefonar cedinho e ir logo dando a “ordem do dia”, lembra? Era mesmo engraçado e só nós entendíamos este meu comando: “... coloque aquela camisa listrada de marinho e branco, tá?? Não se esqueça, também, do perfume que lhe comprei e daquele sapato marrom novo, com a meia, quero você bem lindo nas fotos!

Ah, vamos marcar logo 7 e meia na esquina que sobe para o La Salle, porque não quero entrar na W3. OK? Um dos meninos vai lhe pegar.

E era assim que o dia 25 de dezembro começava entre nós!

Como era bom!

Já acordava animada.
A mesa da ceia, eu gostava de ajeitar sempre de vésperas para testar cada brilho da decoração. A Vila do Papai Noel ficava no canto da direita, para que todos a vissem, logo de entrada. O centro, era sempre reservado para o velho presépio da nossa infância que todos os anos, não tem jeito, ainda me faz viajar nas lembranças. Pareço ver o caminhar feliz da gente indo com a mamãe lá na beneficiadora do Sr. Carlos Soares para pedir dois montinhos de arroz com casca. Em casa, a gente os ajeitava no prato fundo esmaltado, forrado com algodão molhado, e não mais do que 3 meses eram necessários para que virassem uma matinha verde, de 10 cm de altura, que faria sombra à manjedoura.

Até pouco tempo atrás, eu ainda tinha o pedaço de espelho que ela usava para simular o laguinho dos patos. Acredita? Era um charme esse detalhe!

De tarde, na copa, era hora de ajudarmos mamãe a fazer o pão dourado, aquele delicioso doce da nossa infância.

Quando a noite ia chegando, ela escolhia um de nós para acender, com a velha caixinha Fiat Lux, a vela do presépio que daria o clima de noite de lua e com estrelas, para iluminar o caminho dos três reis magos.

O menino Jesus, isto já era tradição das antigas, ficava sempre escondido em algum cantinho e só podia nascer na hora em que, juntinhos ao presépio na sala da frente da casa, escutávamos mamãe com suas orações.

Pequenos que éramos, esse momento era enorme e não era nada fácil ficar quieto, de joelhos, com aqueles vestidos de organdi piniquento e tentar entender a política dos seus perdões, que abrandava qualquer erro dos adultos, e conseguir acompanhar seus pensamentos sem conversa, olhinhos de lado e muita curiosidade.

Afinal, o importante eram os presentes e o poder sair correndo, depois, exibindo alegria de criança que acreditava em Papai Noel. Para mim, nada de bonecas caras, mas uma coisa eu fazia questão: que fosse só minha e que tivesse diâmetro suficiente para se ajustar ao meu colo de menina.

E surgia sempre, não sabemos por qual dos milagre, carrinhos, caixinhas de bolinhas de gude, panelinhas, sabonetes para a vovó e bonecas de papelão, das imensas, com vestidinhos de retalhos dos nossos, barrados e engomados.

E assim, de lembranças em lembranças, eu ia terminando a minha mesa...: o chester com farofa de miúdos bem molhadinha e enfeitado com os fios de ovos que refletia um lindo dourado em tudo; a tábua de frios sortidos; cesta de frutas; o tender caramelado com rodelas de abacaxi, figos frescos, ameixas pretas e cravos da índia; a bandeja de rabanadas que você gostava de comer antes da ceia e o som, bem natalino, alegrando o ambiente.

Eu deixava para o final, o meu famoso, modéstia ä parte, e bem disputado, bolo de nozes com cobertura de creme inglês. Lembra?

Tudo pronto e era a hora de começarmos o nosso tão alegre brinde.

Antes, porém, no meio da tamanha confusão de conversas, você pedia tempo para dar uma geral na família e perguntar, por cada um, usando o nome duplo das Marias, de nós irmãs, e incluindo a imensa lista de sobrinhos.

Com seu famoso sorriso, queria notícias de todos, até dos vizinhos, menos amigos do que meros moradores do lado. Você demonstrava a satisfação, por tudo e por todos.

Mas agora?? Brindar como Eurico? Brindar o quê?... diante de tantas saudades que sinto de você?

Faz dias que lhe procuro e não o encontro. Como conseguiu sumir assim do nada, se fomos todos juntos, no dia 5 de agosto???

Precisamos programar as festas de final de ano e, por favor, quero você sempre presente no meu Natal!!!

Meu beijo,

Elza

9 de julho de 2010

Meu pé de sapoti


A promessa era antiga: ao voltarmos para o Brasil vou levar você para conhecer o pé de sapoti! Prometo!!!

Desde os tempos em que para enfrentar os gelados finais de semana em Washington a família toda se aconchegava no basement, abarrotado de brinquedos, lareira bem quentinha, eu distraía Marina, a caçula dos três filhos, contando histórias.

Para ela, nenhum assunto era mais emocionante do que ir ao meu mundo de criança passado no velho Rio Branco.

Uma, duas, três vezes, ou muito mais do que isto eu tinha que ficar repetindo histórias e minha infância não podia jamais ter fim a não ser que o sono chegasse e que o branquinho da neve, pelos vidros, virasse noite escura e ela dormisse feliz.

Era sempre assim! 

O pique-pega ao redor da Fonte da Praça; o cabra-cegas no sobrado da querida tia Pequita; as brincadeiras na casa da Enedina ou da Isis, onde o quartinho de costura da D. Olga me fascinava e eu fazia da minúscula meia hora que mamãe me deixava ir, um dia de imaginação viajando entre sobrinhas de retalhos e moldando botõezinhos de papelão nos vestidos das bonecas ...

Quando o relógio me alertava, eu voltava para casa e ia direto para o pé de sapoti.

Ali, entre galhos com folhagens bem verdinhas e fechadas, embaixo de umas madeirinhas bem ajeitadas, eu guardava toda a família de “filhinhas” e, lógico, meus segredos. Era a minha casinha de bonecas!! Tinha até escadinha para subir. O máximo!!!

Tudo era assunto e Marina, com seus olhinhos brilhando, tinha a certeza de que minha cidade natal era idêntica à fazenda do Chico Bento.

Até que em 2003, ela com 16 anos, fomos para Rio Branco.

Ao chegar, logo na entrada, bem perto do Clube dos Cinqüenta, eu pedi para meu marido parar o carro.

Queria, a pé, bem devagar, ir exibindo a ela e a uma amiga, as lembranças do passado: ... o Grupo Escolar Padre Antônio Corrêa; ... a rua da D. Júlia que fazia picolé de K-suco de framboesa (a boca ficava vermelhinha e eu achava lindo); ... a venda onde comprava aqueles suspiros cor de rosa cheios de bolinhas coloridas e goiabada em triângulo...e assim fomos.

De repente, vi, dentro de uma varanda, uma senhora bem idosa. Parecia esperar o tempo, esquecida de si. Olhei-a fixamente – precisava reconhecê-la de qualquer forma e encontrar um pouquinho que fosse de intimidade entre nós.

Queria trocar saudades, saber da família, dos vizinhos e ir entrando logo casa adentro, perguntando pelo café e revendo todos do meu passado.

Impossível!

Fui embora na maior decepção com a realidade, mas minha amiga percebendo insistiu para que eu voltasse. Voltei ... parei de novo ... coloquei as bochechas entre as grades da varanda e ali fiquei. A acompanhante da senhora idosa, estranhando muito, indagou: perdeu algo aqui??? Meio sem jeito, eu respondi: "- não, não perdi nada, mas queria muito saber se ela conheceu a minha mãe.... quem sabe??? Seria tão bom ..."

Para meu espanto e absoluta surpresa, ao ver-me de frente, Tina, a acompanhante, inesperadamente, respondeu: "- a árvore que sua mãe tanto gostava, o Pé de Sapoti, está lá!!!".

Perplexas, nós não tivemos olhos para acolher tantas lágrimas! Não podíamos acreditar em tamanha coincidência! Como? Como ela pode falar exatamente no Pé de Sapoti, motivo da nossa viagem e famoso que era unicamente para mim? Como assim?

Completamente sem graça, pediu desculpas pelo desconforto e disse que viu, em mim, minha mãe, D. Eponina, que ela tanto conheceu.

Continuamos a caminhada e chegamos até minha velha casa.

Hoje, é o Clube dos Bancários e, em meio a todo o piso de cimento, só deixaram ficar apenas uma árvore: o meu Pé de Sapoti.

Agora, uma história na minha vida.



Publicado no blog Publicada no blog "Maria Cobogó" em 11.9.2021. https://mariacobogo.com.br/meu-pe-de-sapoti/

Publicado no Jornal da ANE (Associação Nacional de Escritores), Edição n. 100, de abril/maio de 2020. https://anenet.com.br/wp-content/uploads/2020/03/JORNAL-da-ANE-n%C2%BA-100.pdf

Publicado no Jornal "A Voz de Rio Branco", de Minas Gerais-MG, Edição n. 1037. de 30.1.2009.

7 de maio de 2010

Tia Pequita

Seus olhos eram bem azuis.

Os cabelos, louros e lisos, pouco cortados como mandava a tradição das mulheres antigas, eram arrumados cuidadosamente, todas as noites, em belas tranças que eu adorava ver. Quase consigo até sentir a maciez daqueles fios dourados e o discreto perfume da alfazema que ela usava.

O corpo era magro, elegante, com traços tão delicados que nunca demonstraram possuir certas marcas da idade. Afinal, quando eu nasci, ela já tinha 70 e foi, durante 28 anos, a melhor amiga que eu tive.

Que saudades dela!

Quando pequena, nada, nada melhor e mais prazeroso para mim do que chegar ao Sobrado da Praça 28 de Setembro. Ficava ali, no melhor lugar de Rio Branco, bem no centro da cidade. Havia um pequeno beco por onde a gente entrava e, quando chegava na porta principal, mamãe me levantava alto para que eu pudesse puxar o cordão da campainha, segredo bem escondido e que só nós, da família, sabíamos existir.

Logo a tia Pequita aparecia lá em cima, na janela da copa, dava um sinal de presença com as mãos e ia nos esperar com os braços abertos e cheios de alegrias de quem nunca escondeu a vontade de ser a avó, dos sete que a mamãe teve.

E assim, foi!

Carinhos e conselhos eram dados por ela com a naturalidade que o nosso comportamento exigia e bem à revelia de sua forte personalidade.

Por exemplo, chegar à casa dela de short ou calça comprida?? Jamais! Não aceitava. A moda para ela não significava mudança de trajes ou de hábitos, pelo contrário, moda era o antigo, o preservar todos os princípios do seu tempo e, quem quer fosse, que se adaptasse ...

Mamãe, que a admirava tanto e que bem compreendia estas exigências, levava sempre uma muda de roupas que a gente trocava ali, no banco que ficava na ponta da escada. Assim, arrumados como ela queria, nós subíamos os 27 degraus quicando de alegria e íamos sempre direto para a cozinha. O melhor lugar do casarão!

O café estava sempre no jeito: a primeira tirada, a forte, do bule verde esmaltado, era só dos adultos. A do bule vermelho, ralinha, bem do final da coagem, era a das crianças. Com pão banhado de manteiga fresquinha e a mamadeira de café com leite na mão, eu me aboletava no seu colo para escutar, embalada pelo tradicional balançar de ninar, as confidências e conselhos que a mamãe tanto precisava e que nunca tiveram um fim. E, de conversa em conversa, a gente ia absorvendo belos princípios de vida que hoje, bem vejo, se mostram presentes em nossas atitudes.

Só um assunto não rendia conversa entre elas: a Religião. Tia Pequita era firme nas suas idéias espíritas e, mamãe, uma fervorosa seguidora da religião católica. O máximo a que a Tia se permitia era caminhar na linha de um discreto ecumenismo cristão quando se recolhia ao quarto, a partir das 4 da tarde, colocava um copo sobre o rádio, pedia silêncio e se concentrava nas mensagens do pregador Alziro Zarur.

Mas, sempre havia motivo para uma visita no dia seguinte .

O casarão tinha 17 cômodos, sem falar na parte debaixo onde funcionava a farmácia do seu Werneck, uma banca de jornais e a casa da Dona Taninha, uma vizinha tão antiga que fez com que seus 82 anos como inquilina fossem fundamentais para provar, no cartório, a propriedade do casarão. Nunca houve escritura.

Na sala da frente, só podíamos entrar em dia de festa ou quando chegassem visitas. Tia Pequita era exigente, extremamente asseada e éramos vigiados o tempo todo para não sujarmos, à toa, o assoalho de pinho de Riga Suíço, clarinho, que ela esfregava com as mãos. Era lindo!

Carnaval, Semana Santa, Coroação, Comícios políticos e mesmo o footing do dia a dia eram motivos para a cidade inteira se candidatar a uma das suas janelas. Lembro bem dessa sala. No cantinho da direita ficavam sempre reservados dois banquinhos verdes, sobrepostos, que mamãe e ela gostavam de usar para acompanhar, de camarote, a vida mineira passar lá embaixo.

Como nós gostávamos desses momentos! Também, era quando a sala inteira virava o nosso palco com platéia garantida para fazermos, dos sonhos de criança, a realidade que quiséssemos.

Pena que a timidez da Elvira, a irmã mais próxima a mim, não deixava nunca que ela participasse e, para completar, meus shows já começavam com ela dormindo, encolhidinha, na primeira fila.

Outro cômodo, marca do casarão, era a sala de máquinas. Foi ali, entre um point a jour e outro que ela fazia, toujours, o seu ganha pão na vida.

O único momento ruim era a hora de ir embora. A gente ia, contrariando a vontade de ficar para sempre ...

Antes, porém, ela pedia uns minutinhos para brindar a alegria da visita, corria lá dentro e voltava com a bela licoreira de madeira cravejada de marfim, com cada cálice de cristal de uma cor e servia o licor de folhas de figo que ela mesma preparava.

Que delícia !!!

Hoje, passados 50 anos, eu volto, em pensamento, ao casarão.

A porta se abre.

Incrível, nada mudou!

Eu sinto meus pés descalços tocando o friinho do assoalho; corro, como criança,pelos corredores como se não houvesse fim; sinto o cheiro da comidinha dela nas panelas de pedra do fogão à lenha; vejo os raios do sol saindo em riscos pelas telhas de barro; enxergo a mesma bandeja, de sempre, cheia de quitutes no guarda- comida da copa.

Pelas janelas, vejo o meu Rio Branco inteiro vivendo suas belas tardes de verão!!

E, por fim, na sala grande, encontro e abraço demoradamente a querida Tia Pequita como se, nesse gesto, eu estivesse abraçando a todos que hoje me trazem tantas saudades!


Mas a sensação que mais me alegra, que conforta meus sentimentos, é ter a certeza de que o tempo passa para todos, sem dúvida, mas que precisa começar e terminar, invariavelmente, com as belas lembranças da infância!