4 de maio de 2013

O Café de Fila





Eurico, lembra do dia em que estávamos aqui em casa quando a Elvira telefonou toda entusiasmada e disse:

-"Elza, a Globo abriu um concurso para que as pessoas possam escrever sobre uma receita que marcou nossa vida. E tem que ser uma receita mineira. Veja só! Inscreva-se lá, com a do Café de Fila da Tia Pequita. Era tão gostoso e foi tão importante para nós!" 

Lembra disto, Eurico?

Na mesma hora corri ao computador e abri o site. Fiquei super feliz quando percebi que eu não precisaria enviar a receita. Era tudo que eu não tinha!

Nunca pensamos, dentro daquele interior mineiro, em aprender a fazer o inesquecível café com chocolate, creme de leite fresquinho e raspinhas de canela ralada. Também ... quando imaginaríamos, naquela idade de infância, que tudo de bom que tínhamos poderia acabar ou que, um dia, a querida tia fosse embora para sempre e,  com ela, a deliciosa receita do Café de Fila?

A Globo acertou em cheio: o importante mesmo não era um papel de receita e, sim, a emoção e tudo o mais que ficou gravado, em família, ao redor de um prato.

Afinal, foi no meio das xícaras de porcelana branquinhas e no caminhar daquela fila que iniciamos  o ritmo de vida que hoje se faz história.

E o nosso café começava na Padaria do Acácio que ficava ali, de frente para o jardim da 28 de Setembro. Já entrávamos correndo para aquele balcão meio de madeira, meio de vidro e velho,  no centro da padaria. Era uma geladeira quadrada, baixa, com um motor super barulhento e várias tampas redondas. De tantas incursões naquela máquina friinha já sabíamos de cor o rumo  dos deliciosos picolés que queríamos. O preferido era o de coco queimado - e redondo!

Pães de sal fresquinhos, sequilhos, doce de mamão verde ralado e as brevidades que a tia Pequita encomendava faziam sempre parte da nossa conta. Conta que ficava pendurada para o final do mês, em respeito à confiança de anos de vizinhança. 

Assim, de embrulhinhos em embrulhinhos de papel de pão amarrados em barbantes, chegávamos ao Sobrado na hora do café e nada de pressa.
Nem podia. A hierarquia, herdada da rígida educação dos antigos, já fazia parte da cerimônia em todos os sentidos. 
Primeiro, os adultos ocupavam a mesa principal – a de toalha de linho branco. Depois, os "primos-visita", que vinham do Rio e que, a nós, encantavam tanto que não importavam nem os nomes. Todos eram bem vindos, mesmo sendo colocados, lógico, à nossa frente.
No final,  bem depois de todos,  chegava a nossa vez - a das crianças ”de casa“.

Você, Eurico, menino sapeca, feliz e educado, estava sempre ali, na retaguarda da fila para guardar nossos cantinhos e ceder, a todos, a sua vez.

E, agora, Eurico, porquê mudou os hábitos?
Porque fugiu às antigas regras?
Porquê não esperou a sua vez?
Porquê furou a fila, nos deixou sem rumo e sem o café?

Beijos de quem vive com saudades de você,

Elza


Publicado no Jornal da ANE (Associação Nacional de Escritores), Edição n. 95, de junho/julho de 2019https://anenet.com.br/wp-content/uploads/2019/05/Jornal_da_ANE_95_versao_eletronica.pdf

Publicado no jornal ''A nova Imprensa" de Visconde do Rio Branco/Minas Gerais-MG, Edição n. 134. 8.5.2022.