7 de maio de 2010

Tia Pequita

Seus olhos eram bem azuis.

Os cabelos, louros e lisos, pouco cortados como mandava a tradição das mulheres antigas, eram arrumados cuidadosamente, todas as noites, em belas tranças que eu adorava ver. Quase consigo até sentir a maciez daqueles fios dourados e o discreto perfume da alfazema que ela usava.

O corpo era magro, elegante, com traços tão delicados que nunca demonstraram possuir certas marcas da idade. Afinal, quando eu nasci, ela já tinha 70 e foi, durante 28 anos, a melhor amiga que eu tive.

Que saudades dela!

Quando pequena, nada, nada melhor e mais prazeroso para mim do que chegar ao Sobrado da Praça 28 de Setembro. Ficava ali, no melhor lugar de Rio Branco, bem no centro da cidade. Havia um pequeno beco por onde a gente entrava e, quando chegava na porta principal, mamãe me levantava alto para que eu pudesse puxar o cordão da campainha, segredo bem escondido e que só nós, da família, sabíamos existir.

Logo a tia Pequita aparecia lá em cima, na janela da copa, dava um sinal de presença com as mãos e ia nos esperar com os braços abertos e cheios de alegrias de quem nunca escondeu a vontade de ser a avó, dos sete que a mamãe teve.

E assim, foi!

Carinhos e conselhos eram dados por ela com a naturalidade que o nosso comportamento exigia e bem à revelia de sua forte personalidade.

Por exemplo, chegar à casa dela de short ou calça comprida?? Jamais! Não aceitava. A moda para ela não significava mudança de trajes ou de hábitos, pelo contrário, moda era o antigo, o preservar todos os princípios do seu tempo e, quem quer fosse, que se adaptasse ...

Mamãe, que a admirava tanto e que bem compreendia estas exigências, levava sempre uma muda de roupas que a gente trocava ali, no banco que ficava na ponta da escada. Assim, arrumados como ela queria, nós subíamos os 27 degraus quicando de alegria e íamos sempre direto para a cozinha. O melhor lugar do casarão!

O café estava sempre no jeito: a primeira tirada, a forte, do bule verde esmaltado, era só dos adultos. A do bule vermelho, ralinha, bem do final da coagem, era a das crianças. Com pão banhado de manteiga fresquinha e a mamadeira de café com leite na mão, eu me aboletava no seu colo para escutar, embalada pelo tradicional balançar de ninar, as confidências e conselhos que a mamãe tanto precisava e que nunca tiveram um fim. E, de conversa em conversa, a gente ia absorvendo belos princípios de vida que hoje, bem vejo, se mostram presentes em nossas atitudes.

Só um assunto não rendia conversa entre elas: a Religião. Tia Pequita era firme nas suas idéias espíritas e, mamãe, uma fervorosa seguidora da religião católica. O máximo a que a Tia se permitia era caminhar na linha de um discreto ecumenismo cristão quando se recolhia ao quarto, a partir das 4 da tarde, colocava um copo sobre o rádio, pedia silêncio e se concentrava nas mensagens do pregador Alziro Zarur.

Mas, sempre havia motivo para uma visita no dia seguinte .

O casarão tinha 17 cômodos, sem falar na parte debaixo onde funcionava a farmácia do seu Werneck, uma banca de jornais e a casa da Dona Taninha, uma vizinha tão antiga que fez com que seus 82 anos como inquilina fossem fundamentais para provar, no cartório, a propriedade do casarão. Nunca houve escritura.

Na sala da frente, só podíamos entrar em dia de festa ou quando chegassem visitas. Tia Pequita era exigente, extremamente asseada e éramos vigiados o tempo todo para não sujarmos, à toa, o assoalho de pinho de Riga Suíço, clarinho, que ela esfregava com as mãos. Era lindo!

Carnaval, Semana Santa, Coroação, Comícios políticos e mesmo o footing do dia a dia eram motivos para a cidade inteira se candidatar a uma das suas janelas. Lembro bem dessa sala. No cantinho da direita ficavam sempre reservados dois banquinhos verdes, sobrepostos, que mamãe e ela gostavam de usar para acompanhar, de camarote, a vida mineira passar lá embaixo.

Como nós gostávamos desses momentos! Também, era quando a sala inteira virava o nosso palco com platéia garantida para fazermos, dos sonhos de criança, a realidade que quiséssemos.

Pena que a timidez da Elvira, a irmã mais próxima a mim, não deixava nunca que ela participasse e, para completar, meus shows já começavam com ela dormindo, encolhidinha, na primeira fila.

Outro cômodo, marca do casarão, era a sala de máquinas. Foi ali, entre um point a jour e outro que ela fazia, toujours, o seu ganha pão na vida.

O único momento ruim era a hora de ir embora. A gente ia, contrariando a vontade de ficar para sempre ...

Antes, porém, ela pedia uns minutinhos para brindar a alegria da visita, corria lá dentro e voltava com a bela licoreira de madeira cravejada de marfim, com cada cálice de cristal de uma cor e servia o licor de folhas de figo que ela mesma preparava.

Que delícia !!!

Hoje, passados 50 anos, eu volto, em pensamento, ao casarão.

A porta se abre.

Incrível, nada mudou!

Eu sinto meus pés descalços tocando o friinho do assoalho; corro, como criança,pelos corredores como se não houvesse fim; sinto o cheiro da comidinha dela nas panelas de pedra do fogão à lenha; vejo os raios do sol saindo em riscos pelas telhas de barro; enxergo a mesma bandeja, de sempre, cheia de quitutes no guarda- comida da copa.

Pelas janelas, vejo o meu Rio Branco inteiro vivendo suas belas tardes de verão!!

E, por fim, na sala grande, encontro e abraço demoradamente a querida Tia Pequita como se, nesse gesto, eu estivesse abraçando a todos que hoje me trazem tantas saudades!


Mas a sensação que mais me alegra, que conforta meus sentimentos, é ter a certeza de que o tempo passa para todos, sem dúvida, mas que precisa começar e terminar, invariavelmente, com as belas lembranças da infância!